Marcela Fassy nasceu em Belo Horizonte, em 1984, e atualmente vive em Diamantina/MG. É formada em História pela UFMG, especialista em Artes Visuais (SENAC-MG) e Mestre em Ciências Humanas (UFVJM). É autora das coletâneas de contos Oniros (Urutau, 2022) e Animais Cinzentos (Viseu, 2021). Foi finalista do 4º Prêmio Internacional Pena de Ouro na categoria Conto.
Estava chovendo e meus sapatos ficaram molhados. Sapato molhado incomoda porque é uma coisa que não devia estar ali, é como ter uma coisa sobrando que nem uma casca de ferida no joelho que coça e dá vontade de arrancar mas não pode, porque sai sangue e papai briga, diz que eu vou ficar toda marcada e que as pessoas vão me olhar esquisito, achando que eu tenho uma doença. Então tive que ficar a tarde toda com os sapatos molhados me incomodando e não gostei.
Teve o cachorro-quente das Lojas Americanas, eu gosto que o molho que tem no cachorro-quente das Lojas Americanas tem um gosto diferente como se tivesse um segredo dentro dele, mas naquele dia meus sapatos estavam molhados e eu não gostei tanto como das outras vezes. Estava chovendo e parece que as pessoas entraram nas Lojas Americanas não porque quisessem comprar cachorro-quente ou outra coisa qualquer, mas só pra não ficarem na chuva, e a loja estava muito cheia e as pessoas esbarravam na gente com os guarda-chuvas molhados, aí a roupa da gente ficava só meio molhada e isso também incomodava como ter uma coisa sobrando, porque quando a roupa fica toda encharcada não tem nada sobrando, porque aí tudo é feito de água e é tudo uma coisa só, mas se a roupa está só meio molhada, aí incomoda. Às vezes eu acho que as coisas só incomodam a mim, ou me incomodam de um jeito diferente do jeito que elas têm de incomodar o resto das pessoas, mas naquele dia eu acho que as roupas só meio molhadas e a loja muito cheia estavam incomodando as outras pessoas também, porque elas atravessavam os corredores da loja esbarrando umas nas outras e não pediam desculpas nem sorriam pedindo desculpas, e as caras delas tinham uma expressão de quem estava em outro lugar ou de quem queria muito estar em outro lugar. E meus sapatos estavam molhados e mesmo o cachorro-quente das Lojas Americanas sendo tão delicioso, daquela vez não foi como das outras vezes, porque meus sapatos estavam molhados e mamãe disse que eu comia muito devagar e que eu precisava terminar depressa pra gente não se atrasar. Eu não gosto quando mamãe me olha daquele jeito.
Eu pensei que a gente ia ao cinema como das outras vezes e por isso eu precisava terminar depressa o cachorro-quente, mas na verdade a gente ia no trabalho de papai, tinha algo importante no trabalho de papai aquele dia mas eu não lembro o que era. Eu quase nunca ia no trabalho de papai, só tinha ido duas vezes e porque era Natal, o trabalho de papai é um lugar muito sério com mesas de madeira e grampeadores e gavetas de ferro muito pesadas com pastas de papelão dentro e cadeiras que rodam e as pessoas falam sobre coisas sérias e não pode correr nem falar alto, mas quando era Natal eles me deixavam ir lá e eu gostava, porque as pessoas sorriam pra mim e diziam que eu era bonita e me davam canetas e papel para colorir, era um papel que saía de uma máquina e que tinha umas tiras do lado que eram muito boas de destacar, e depois as pessoas olhavam os meus desenhos e diziam que eu desenhava muito bem e então elas me olhavam com amor. Aquele dia tinha uma coisa importante no trabalho de papai, mas eu não lembro o que era.
Subimos pelo elevador de madeira com grades de ferro e meus sapatos estavam molhados e papai estava na varanda ao lado de uma mulher de vestido vermelho, eles estavam calados um do lado do outro olhando para a cidade, eles olhavam para a cidade do jeito que dois adultos têm de estarem juntos e calados olhando para alguma coisa bonita que só eles conseguem ver, e é como se em volta deles tivesse uma linha invisível de faz-de-conta que impedisse as outras pessoas de chegar perto deles. O trabalho de papai ficava lá no alto e a cidade lá embaixo tinha muitos prédios altos e baixos, quase todos eram cinza e o céu também era cinza e grande e o vestido da mulher era vermelho, eles estavam calados e olhavam para a cidade mas era como se estivessem conversando sobre alguma coisa muito importante que só eles entendiam, porque eles olhavam para a cidade que era grande e cinza e o vestido era vermelho e eles viam a mesma cidade.
Naquele dia tinha alguma coisa importante no trabalho de papai, senão mamãe não teria ido até lá nem me levado com ela, naquele dia tinha alguma coisa importante no trabalho de papai mas eu não lembro o que era. Meus sapatos estavam molhados e o vestido da mulher era vermelho e a cidade era cinza e bonita de um jeito estranho e triste, o trabalho de papai ficava lá no alto e tinha penas de pombos e vento e a chuva fininha, o mármore do parapeito estava molhado e muito liso e eu pensei que era perigoso e que alguém podia subir e escorregar e cair lá embaixo.
Naquele dia tinha alguma coisa importante no trabalho de papai mas eu não lembro o que era, lembro que nesse dia não me deram canetas para colorir. Lembro que a mulher quando viu eu e minha mãe chegando na varanda ficou vermelha, pensando bem eu não sei mais se o vestido era vermelho ou se a mulher é que era vermelha. A mulher vermelha não gostou, acho que ela pensou que eu e mamãe podíamos querer ultrapassar a linha de faz-de-conta desenhada em volta dela e de papai e querer brincar de ver o que eles estavam vendo e que só eles podiam ver, tem jogos que só dá pra jogar de dois e quando tem mais gente querendo jogar atrapalha. Daí a mulher vermelha virou as costas e entrou para o escritório apressada, quase correndo, desmanchou a linha de faz-de-conta e não disse que eu era bonita, não quis brincar comigo nem quis ver os meus desenhos. Eu fiquei triste porque a mulher vermelha não me olhava com amor e porque não me deram canetas para colorir e meus sapatos estavam molhados.
Então eu e mamãe estávamos no ônibus voltando pra casa, meus sapatos estavam molhados e o rosto de mamãe estava molhado e um pouco embaçado que nem as vidraças do ônibus na chuva, nesse dia aconteceu alguma coisa importante no trabalho de papai mas eu não lembro o que era.
Aí mamãe me mandou passar embaixo da catraca do ônibus pra eu não pagar a passagem, quando a gente é criança eles não acham ruim, então quando chegou a vez de mamãe passar pela catraca, porque ela é adulta e os adultos eles não deixam passar embaixo da catraca, eu já estava na parte de trás do ônibus e vi quando mamãe de repente virou ela também uma mulher vermelha e começou a brigar e a gritar com a trocadora do ônibus porque ela não tinha dado o troco certo da passagem, e todas as pessoas do ônibus começaram a olhar para mamãe e a balançar a cabeça e eu vi que elas olhavam para mamãe sem amor.
Então de repente eu virei também uma menina vermelha e senti que minha cabeça ia explodir de tão vermelha e minha cabeça começou a chover e chovia sem parar, em todos os lugares. Então eu fechei os olhos com muita força e pedi para o senhor deus pra eu conseguir chover pra fora do ônibus, que nem as gotas que escorriam do lado de fora da vidraça e formavam desenhos, dizem que quando a gente pede com sinceridade o senhor deus atende, mas naquele dia ele não podia me atender, porque eu estava com raiva e com vergonha de mamãe e as crianças nunca podem sentir raiva e vergonha de suas mães, então o senhor deus ia me castigar.
O senhor deus ia me castigar porque eu tive raiva e vergonha de mamãe e também porque na casa de Vovó uma vez eu tive nojo do senhor deus porque ele ficava sangrando pendurado na parede e olhando pra gente enquanto a gente comia, e eu tive vontade de vomitar por causa das feridas e do sangue do senhor deus no alto da parede e não consegui comer minha comida. Então eu era uma menina vermelha e má e merecia muitos castigos e quando descemos do ônibus mamãe me puxava pelo braço e me olhava sem amor porque ela sabia que eu tinha raiva e vergonha dela, e meus sapatos estavam molhados e o mundo inteiro me olhava sem amor.
Desenho de Ariyoshi Kondo.
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Que texto bonito